Friday, January 9

A Vilã

O meu nome é Alice Sophia Carlson e a história que vos vou contar passou-se quando eu tinha dezanove anos. Nessa altura estava na universidade a estudar Informática – o que muito chocou a minha mãe – e vivia com as minhas duas melhores amigas que, ironicamente, tinham ambas o nome de Jane. Porém as “Janes” não são importantes no que vou relatar, mas sim a minha irmã mais velha, Alison Sarah – os meus pais não prezavam muito pela originalidade em relação a nomes.

Ela tinha vinte e um anos, desistira do curso de Educadora de Infância – o que, novamente, muito chocara a minha mãe –, estava empregada numa empresa de telemarketing e, nos tempos livres, trabalhava no seu primeiro romance que ia ser, e passo a citar, “o melhor de todos os tempos”. Eu, para ser sincera, duvidava um pouco. A minha mente não se prendia muito a livros e imaginação. Preferia programar e a matemática da informática. Tinha que admitir que, nesse ponto, Alison era bastante diferente de mim, sempre entusiasmada pelas literaturas. Porém eu cria que, como sempre, ela ainda estivesse presa às histórias de bem vence o mal e rapaz e rapariga vivem felizes para sempre. O mundo não é assim e, para se inovar na literatura, não se pode escrever um mundo deste modo. É o que os escritores vêm a fazer há séculos e vejam onde foram parar. Mesmo as tragédias perderam o seu toque de realidade.

Pouco ou nada sabia na altura acerca do tal romance – a não ser aquela crença entusiástica – e Alison recusava-se a dizer algo mais. Até que um fim-de-semana em que ambas tínhamos ido visitar os nossos pais, ela pousou ao lado do meu computador o que me pareceu meia resma de papel e ordenou: “Lê!” Folheei as quase quatrocentas páginas de Times New Roman, 12, espaçamento de linhas 1,5 e empalideci. Ela só podia estar a gozar comigo, esperando que eu lê-se aquilo tudo! Há três anos que tinha o Harry Potter e a Pedra Filosofal da minha mesa-de-cabeceira e ainda não passara do capítulo dois, O Vidro Desaparecido. Fitei-a com descrença mas ela colocou a expressão de desespero que tantas vezes me fazia esquecer que eu era a mais nova. Peguei no monte de folhas e, com intenção de o ler, juntei-o aos meus manuais.

Desde que descobri o milagre da Internet que sou mais rápida a ler o que está escrito num ecrã de computador que numa folha de papel, pelo que as quatrocentas folhas que Alison me entregara não me seduziam e começavam a ganhar pó numa das prateleiras da minha estante. Meses passaram-se e, só quando os exames acabaram e eu fui arrumar as minhas coisas para passar o Verão, é que voltei a encontrar o romance. A minha irmã não me perguntara por ele ainda, sabendo da minha lentidão de leitura e decidi que iria ler aquilo durante as férias. Que melhor altura para o ler que nos preguiçosos e quentes dias de praia e sol?

Surpreendi-me a mim mesma quando realmente peguei nele um dia. Durante o Verão normalmente nem uma revista lia, demasiado ocupada em divertir-me. Mas algo me puxou para ele – talvez a chuva que caía e me impedia de ir à praia – e enchi-me de coragem, lendo pela primeira vez o título com atenção: “Salvação”. Na minha singela opinião de futura informática precisava de ser trabalhado. Mentiria se dissesse que me vi embrenhada na história. Os livros não tinham, e ainda não têm, esse efeito em mim e ia vogando pelas páginas, capítulo por capítulo. Foi no dia em que cheguei à página cem que Alison foi a casa passar um fim-de-semana. Chateou-me por ter lido tão pouco mas elogiou, com inveja, o meu bronzeado. Antes de dormir muitas vezes reuníamo-nos no quarto dela a conversar.

– Baseaste-te em alguém para as personagens do teu romance?

– Em pessoas que conheço, como é normal.

– Ah. Está bem.

Fui lendo, cada vez mais ofendida à medida que as páginas lidas começavam a ser quase tantas quanto as por ler. Reconhecia a personalidade de vários amigos da minha irmã, até um dos seus ex-namorados, mas eu estava ausente. Continuei a ler e devo dizer que não fixei a história completamente e até hoje, mesmo com o filme e tudo isso, não me recordo muito bem dos pormenores. Até que, quando começava realmente a acreditar que fora completamente posta de parte, reconheci a personagem que parecia me representar. Por incrível que parecia, li as quatrocentas páginas naquele Verão. Não fiquei satisfeita quando juntei a última página ao monte e não era pela qualidade da história. Alison conseguira surpreender-me mas, acima de tudo, queria esclarecer uma coisa.

Ela avisou-me que iria a casa para o aniversário da nossa mãe, em meados de Setembro, pelo que refreei as minhas dúvidas acerca do “Salvação” para essa altura e voltei a dedicar-me à praia e ao meu bronze. As aulas apenas começavam no início de Outubro e, como ia ficar na mesma casa com as “Janes, não tinha quaisquer preocupações. Porém aproximava-se o dia de anos da minha mãe e vi a minha tranquilidade a desaparecer.

Ela decidira que, naquele ano, iria fazer uma festa, convidar os meus avós, os seus amigos do Liceu e até da Universidade. Parecia uma crise de meia-idade, disfarçada por uma dose cavalar de saudosismo e toneladas de aperitivos. Eu e o meu pai resignávamo-nos em trocar olhares diante o desespero perante a preparação da salada de polvo e as tâmaras enroladas em bacon. Foi com alívio e não com irritação que saudei a chegada de Alison a casa.

A festa correu bem, sem falta de comida e com muitas lágrimas da parte da minha mãe ao ver velhos amigos. Claro que no dia seguinte o grande problema foi limpar mas, com a ajuda das minhas avós, tratámos de tudo rapidamente. À tarde Alison arrastou-me para o antigo quarto dela e ordenou-me que comentasse o que tinha lido. Falei sobre a história – cujo pormenores ainda se mantêm difusos –, sobre o facto que ela parecia ter evoluído em relação ao pouco que já lera dela e que fluía bem – um grande elogio, vindo de mim. Até que finalmente abordei o assunto que me chateava:

– Em quem te baseaste para a Daniele?

– A sério que não percebeste?

– Não sei, achava que sim, mas depois no fim fiquei confusa.

– Foi em ti, parva.

Olhei para as mãos e recordei-me do único facto que, até hoje, me lembro do romance. Daniele Messer, de vinte e três anos, depois de ter destruído a vida de toda a gente, a lançar-se do topo de um arranha-céus. A personagem, baseada em mim, morta.

– A vilã? Eu sou a vilã do teu romance?

– Gosto de considerar que a vilã do meu romance é a vida, Alice.

– Oh, por favor. – Sentia-me magoada e a última coisa que me apetecia era pensar naquilo. – Deixa-te de tretas.

– Estás chateada porque ela morreu?

– Não, Alison, estou chateada por causa de toda a personagem! Ela é a vilã.

Levantei-me e sai do quarto dela, fechando-me no meu com a música alta. Sentia-me novamente uma adolescente de quinze anos, revoltada com a vida, mas desta vez a vida tinha o nome de Alison. Ela foi-se embora nesse mesmo dia e fingimos as duas esquecer o romance até ao Natal desse mesmo ano em que ela anunciou ao jantar que uma editora adorara o manuscrito e iria publicá-lo. Fiquei em choque, com o garfo a meio do caminho, apenas me perguntando como raio fora aceite tão rapidamente.

Até que cheguei ao ponto de que “eu” iria destruir a vida de mais de metade do elenco do “Salvação” – agora com o título alterado – e matar-me por todo o país e, se o livro fizesse sucesso, por todo o mundo. Não fiquei muito satisfeita e só consegui me acalmar quando me rendi à baba de camelo feita pela minha avó paterna. Alison apenas olhou para mim com um pedido de desculpas no olhar e, novamente, fingimos esquecer o romance. Fomos perdendo o contacto, apesar de nos vermos em aniversários e no Natal, quando ambas íamos para os nossos pais e não para a casa da família dos nossos maridos. Porém a união que tínhamos quando éramos mais jovens foi desaparecendo, sem os telefonemas das três da manhã ou os e-mails de três páginas.

Há três dias atrás foi o funeral da Alison. Teve um acidente de carro e, felizmente, nenhum dos meus sobrinhos ia no carro com ela. O lado negativo é que ela não conseguiu sobreviver. Hoje recebi uma carta, com uma semana de atraso – os correios só falham quando precisamos mesmo que funcionem –, e finalmente me debulhei nas lágrimas que continha desde o funeral, antes sequer de abrir o envelope. Quando o fiz tive de lutar contra o nevoeiro que se instalava ao ler a missiva. As últimas palavras fizeram-me soltar um riso soluçado.

“Sei que é demais pedir-te que voltes a ler todas aquelas páginas mas, por favor, vê o filme. Talvez depois de todos estes anos compreendas quem é a Daniele e me consigas perdoar.”

Pego na caixa e observo o rosto dos personagens na capa. Coloco o disco no DVD e preparo-me para ver, com novos olhos, a obra-prima da minha irmã, que sempre me conheceu melhor do que eu mesma.